Líderes indígenas falam em morte coletiva, mas recuam da expressão suicídio

O MPF ajuizou recurso no TRF em face da ordem de reintegração de posse da fazenda Cambará, no município de Cambará, no Mato Grosso do Sul.
O MPF pede a reforma da decisão que determina a saída dos índios ou, pelo menos, a permanência na área até que os estudos antropológicos que irão determinar a tradicionalidade da ocupação, realizado pela Funai, sejam concluídos.
Entenda o Processo

ìndios atravessam rio - foto: MPF
O recurso foi ajuizado em 16 de outubro mas não foi julgado ainda. O MPF afirma que a decisão de primeira instãncia não leva em consideração a ocupação tradicional pelos indígenas da área em disputa. Para a Justiça o que importa é que na data da ocupação, a posso era de um fazendeiro, perdendo então a relevância do fator histórico e antropológico.
Estudo realizado pela Funai
A nota técnica da Funai publicada em março deste ano concluiu que a área reivindicada pelos indígenas como Pyelito Kue e Mbarakay é ocupada desde tempos ancestrais pelas etnias guarani e kaiowá. “Desde o ano de 1915, quando foi instituída a primeira Terra Indígena, ou seja, a de Amambai, até os anos de 1980, o que se assistiu no Mato Grosso do Sul foi um processo de expropriação de terras de ocupação indígena, em favor de sua titulação privada”. Veja a Nota completa.
Extinção ou suicídio coletivo?
A carta da comunidade guarani e kaiowá de Pyelito Kue afirma o propósito de resistência dos índios, de não abandono de suas terras tradicionais. Mesmo diante de tantas violências, eles estão dispostos a morrer juntos pelo seu tekoha. A carta representa um clamor por reconhecimento e um alerta à sociedade brasileira para a lenta e gradual extinção dos guarani e kaiowá. Extinção essa, representada em números.
Veja trecho da carta
"Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos.
Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.
Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio.
Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS".
Líder Lopes ou Apykaa Rendy foto: CIMI
"Os brancos querem nos atacar. Por isso nós dizemos: morreremos pela terra!
Mas a ideia da gente se matar, ou se suicidar, nós não iremos fazer. Nós morreremos se os fazendeiros nos atacar. Aí poderemos morrer!"
"Desde o começo que nós entramos lá, estamos firme. A comunidade falou que não vai desistir. Queremos retomar a terra que foi dos nossos avós, onde os nossos parentes morreram. Queremos realmente ocupar essa terra. Viveremos realmente neste lugar! Esta terra não é dos brancos, é nossa e de nossos antepassados. Se a gente perder a nossa vida será por causa da terra", conclui Apykaa.
Números Alarmantes de uma Realidade Cruel
Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a cada seis dias, um jovem guarani e kaiowá se suicida. Nos últimos 32 anos, foram 1500 mortes. Essas informações são reforçadas pelo Mapa da Violência do Brasil, publicado em 2011 pelo IBGE. Segundo o documento, acontecem 34 vezes mais suicídios indígenas em Mato Grosso do Sul que a média nacional. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens. A maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos.
A taxa de mortalidade infantil entre a etnia guarani e kaiowá é de 38 para cada mil nascidos vivos, enquanto a média nacional é de 25 mortes por mil nascimentos. Já a taxa de assassinatos - cem por cem mil habitantes – é quatro vezes maior que a média nacional. A média mundial é de 8,8.
A Funai reconhece que a situação dos índios guarani-kaiowá hoje, é de confinamento
Bastidores da tragédia Kaiowá-Guarani: Multinacionais, partidos, Justiça…
Antropólogo e jornalista, Spensy Pimentel deixou, em 2007, o trabalho como repórter especial em Brasília, na Agência Brasil, para se dedicar à pesquisa de doutorado na USP, sobre a vida política dos Guarani-Kaiowá, atualmente em fase de conclusão.
Spensy já tinha defendido o mestrado, também na USP, sobre a epidemia de suicídios verificada entre esses indígenas desde os anos 80. Realizou pesquisa no Mato Grosso do Sul exatamente no periodo em que os conflitos entre índios e fazendeiros se acirraram, desde 2009.
Em 2011, Spensy Pimentel lançou, junto com parceiros, o vídeo "Mbaraká – A Palavra que age", sobre o envolvimento dos xamãs Guarani-Kaiowá com a luta pela terra em MS.
Nesta conversa com Terra Magazine, o antropólogo Spensy Pimentel elenca alguns dos atores presentes nos bastidores dessa tragédia:
- (…) O movimento de recuperação das terras, que organiza as grandes assembleias (Aty Guasu), é uma reação a esse confinamento que o Estado brasileiro impôs aos Kaiowá e Guarani.
Diz ainda Spensy Pimentel:
- Esse confinamento foi realizado para viabilizar a instalação do agronegócio ali: cana, soja, gado, milho produzidos para exportação, em parceria (insumos, apoio tecnológico e, muitas vezes, financiamento) de multinacionais como Bunge, Cargill, ADM, Monsanto…
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Terra Magazine: Quando fui ao Mato Grosso do Sul, em 1999, encontrei dados que davam conta de 308 suicídios entre 1986 e 1999. Recentemente, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) divulgou que, de 2000 a 2011, foram mais 555 casos. Como os indígenas percebem o fenômeno?
Spensy Pimentel: Há uma série de dificuldades para acessar o que os Kaiowá e Guarani entendem sobre essas mortes. Em primeiro lugar, pode-se compreender que, para qualquer família em que acontece uma morte desse tipo, há, muitas vezes, certa reserva, certo receio de falar a respeito. As informações que pude obter se baseavam, em geral, na conversa com pessoas que conviviam com as famílias onde os casos ocorreram. A partir daí, é possível obter dados sobre as motivações das pessoas – boa parte, jovens – e sobre a forma como os familiares reagem. Em geral, posso dizer que, ao contrário do que já avaliaram algumas pessoas, essas mortes são, sim, um grande incômodo para as famílias Kaiowá e Guarani.
Por que isso está acontecendo?
Não é por acaso que essas mortes começaram a acontecer em maior número desde os anos 80. Os Kaiowá e Guarani mais antigos não se lembram de ter visto mais que um ou dois casos de enforcamentos antes desse período. Esse tipo de morte existia, mas era raro. Nos anos 80, no fim do regime militar, completa-se o processo de expulsão desses indígenas das áreas que eles ocupavam, em geral, nas beiras de rios e córregos, por todo o sul de Mato Grosso do Sul. Dezenas de grupos são literalmente despejados dentro das antigas reservas demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio entre 1915 e 1928 para liberar a região para o agronegócio. É o que alguns chamam de “confinamento”, pois as antigas áreas, somadas, não passavam de 18 mil hectares. O processo não ocorreu sem reação por parte dos indígenas. Se você olhar os arquivos, vai ver notícias sobre grupos que resistiam aos despejos já em 1978, 1979.
O confinamento tem relação direta com essa tragédia dos suicídios, então?
Essa ação – movida em plena ditadura, é sempre bom lembrar – gerou uma mistura muito grande de famílias vindas de lugares diferentes, sem laços construídos historicamente, disputando recursos em áreas extremamente limitadas. Essas pessoas ficaram submetidas a alguns grupos recrutados pela Funai, como antes pelo SPI, em torno de um "capitão", que era um indígena empoderado pelo Estado para, em alguns lugares, ser uma espécie de microditador ali do local. Essas figuras recebiam apoio da ditadura para reprimir os demais indígenas que tentassem voltar para seus lugares de origem, como eles fazem até hoje, em casos como o de Pyelito. Foi nesse ambiente autoritário, opressor e miserável que os suicídios se multiplicaram. Só muito recentemente a Funai deixou de empoderar esses capitães.
As pessoas têm uma enorme ansiedade de voltar para seus lugares de origem, que chamam de "tekoha" (lugar onde se pode viver do nosso jeito). Elas querem escapar das reservas porque, ali, sentem que vivem mal. O ambiente nesses lugares é, hoje, tão precário que os jovens estão fazendo rap, eles se identificam com os problemas que grupos como o Racionais MC’s expõem em suas músicas, em relação às favelas de São Paulo: violência, racismo… Em suma, o Brasil impôs um projeto para os Kaiowá e Guarani que eles não aceitam.
Os acampamentos como o de Pyelito, do pessoal que escreveu a famosa carta-testamento há duas semanas, são, então, formados por gente que quer fugir dessa realidade?
Exatamente. Existem, hoje, mais de 30 acampamentos Kaiowá e Guarani espalhados por beiras de estrada, ou dentro de fazendas, em áreas que eles ocuparam. A isso se somam mais de 20 áreas que foram recuperadas e regularizadas, depois da dura pressão dos indígenas, com mortes de lideranças, etc. Só que essas áreas são quase todas muito pequenas, algumas têm apenas 500 hectares. O Panambizinho, que você visitou em 1999, tem 1,2 mil hectares e foi a única área homologada no governo Lula que não foi embargada pelo STF. Então, essas novas áreas não deram conta de resolver a situação, foram só uma forma de empurrar com a barriga o problema. Sem falar que muitas terras, mesmo as demarcadas, não podem ser ocupadas por conta de intermináveis disputas na Justiça.
Quais as perspectivas de resolver o conflito, de se colocar um fim a essa tragédia?
A atual mobilização que surgiu na internet é muito importante, sobretudo porque a maior arma dos que querem impedir as demarcações é a ignorância das pessoas sobre o que se passa em Mato Grosso do Sul. Quem sabe agora o governo federal e o Supremo Tribunal Federal ajam (há ações esperando há anos para serem julgadas ali). Não é só a Funai que tem responsabilidade nessa história. Alguns processos já estão no Ministério da Justiça ou no Palácio do Planalto, esperando providências. Outros estão no STF ou no TRF da 3ª Região, em São Paulo.
O movimento de recuperação das terras, que organiza as grandes assembleias (Aty Guasu), é uma reação a esse confinamento que o Estado brasileiro impôs aos Kaiowá e Guarani. Esse confinamento foi realizado para viabilizar a instalação do agronegócio ali: cana, soja, gado, milho produzidos para exportação, em parceria (insumos, apoio tecnológico e, muitas vezes, financiamento) de multinacionais como Bunge, Cargill, ADM, Monsanto…
Pesos pesados…
Sim, e não apenas estes. A disputa é desigual porque os indígenas lutam na Justiça por anos com fazendeiros que contratam advogados com o dinheiro que estão extraindo daquelas terras. Não é justo, as empresas que compram essa produção têm de ser responsabilizadas, esse movimento já está começando. Algumas empresas recentemente anunciaram que deixariam de comprar cana produzida em terras disputadas, mas isso ainda é muito restrito. Não se tem notícia de providência semelhante por parte da Petrobras, por exemplo. E o BNDES, apesar de ser provocado há anos pelos movimentos sociais e o MPF, ainda não adotou uma política de frear financiamentos que afetem essas terras. Há muito interesse político em jogo, o estado é governado desde 2007 pelo PMDB, "sócio" do governo federal, como se sabe.
Qual o estágio desse aspecto da questão, hoje?
Muitos dos envolvidos no debate, hoje, não negam a possibilidade de pagar indenizações aos fazendeiros que realmente tenham adquirido as terras de boa fé. Sabemos que muitos deles foram levados ali por incentivo do governo federal ou do Estado. Mas é fato também que muitos deles não têm agido "de boa fé" quando contratam homens armados para atacar os índios ou quando tentam obstruir os trabalhos da Funai na Justiça, na arena política em Brasília, ou até mesmo ameaçando antropólogos, como já aconteceu recentemente. De boa fé seria, neste momento, tentar ajudar a resolver essa crise humanitária por que passam os Kaiowá e Guarani e não tentar lavar as mãos, como alguns vêm fazendo.
Os Kaiowá ficaram conhecidos nos últimos anos como "índios suicidas", alguns dizem que isso "faz parte da cultura deles". Que lhe parece isso?
Essa ideia da "cultura" tem sido, sistematicamente, usada contra eles. Dizem que se matam para ir à Terra sem Males. Isso é um equívoco, por vezes, uma perversidade, porque dá a ideia de que os brancos no Estado de MS – e do resto do Brasil, que compram o que é produzido lá – não são responsáveis pelo que está acontecendo com os indígenas. São responsáveis, sim. O destino post mortem de alguém que se enforca não é bom, as pessoas não são incentivadas socialmente a se matar, isso não existe. São incentivadas a lutar por suas terras, a serem guerreiros, isto sim.
O que existe é um sentimento muito grande de revolta dos jovens, com a situação que eles vivem, que se transforma em uma violência contra si mesmos e suas famílias. Mas quem é que gerou essa situação que causa a revolta? Não foram os indígenas, foram os brancos, com o confinamento. Os acampamentos, repito, são uma reação ao confinamento. Ali, como diz a carta do pessoal de Pyelito, eles vivem coletivamente e morrem coletivamente, estão buscando um estilo de vida que rompe com o que é oferecido nas reservas, o individualismo das cidades, o trabalho degradante nas usinas de cana…
Aí os "suicídios"…
Há suicídios nos acampamentos? Sim, alguns, porque a situação, em alguns momentos, se torna desesperadora. Ainda assim, os Guarani-Kaiowá persistem, porque o único caminho que percebem para fugir à miséria e à fome é a luta pela terra.
Ai eu tenhu medu do jaison...
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